Os olhos de um grupo de macacos-prego-galegos fitavam entre as folhagens numa área de mata nativa de Mamanguape, a 85 quilômetros de João Pessoa, na Paraíba. Moradores da região relatam que, às vezes, alguns deles saem em busca de cana-de-açúcar em plantações vizinhas. Um filhote expôs-se mais no meio de galhos. Mas foi só. Tão rápido quanto surgiram, os quatro animais se foram, sem dar a mínima para as armadilhas com frutas que havíamos deixado no chão. No lusco-fusco da tarde, o grupo sumiu sem deixar vestígios.
Não era a primeira vez que esses macacos se mostravam fugazes. Na verdade, vem sendo assim há mais de 300 anos. Uma das 12 espécies de seu gênero do planeta, o macaco-prego-galego (Cebus flavius) permaneceu um enigma para a ciência durante todo esse tempo. Citado apenas em antigos livros de naturalistas europeus que passaram pelo país nos séculos 17 e 18, não era visto desde então. Durante gerações, a espécie foi até mesmo dada como extinta. Contudo, nem bem teve sua existência novamente reconhecida pela comunidade científica, o Cebus flavius já corre, mais uma vez, o risco de sumir – desta vez para sempre. “Pela sua área de distribuição, a ameaçada Zona da Mata, e pelo baixo número de populações encontradas até agora”, diz o biólogo Marcelo Marcelino, chefe do Centro de Proteção de Primatas Brasileiro, “essa poderá ser em breve considerada a espécie em estado mais crítico de conservação no Brasil.”
Esta é a história de uma odisseia naturalista, o resgate de uma espécie perdida. E que confirma que, ainda hoje, muitos avanços nas ciências se devem aos desenhos dos pioneiros europeus, cujas pinturas nos brindaram com uma realidade quase fotográfica da natureza. Associando tais desenhos a exemplares de animais coletados, pode-se chegar a conclusões precisas. Marcelo Marcelino notou pela primeira vez a existência desses macacos em 1990, quando trabalhava no levantamento de guaribas na Zona da Mata nordestina, há muito fragmentada pela expansão das lavouras de cana-de-açúcar. Em suas andanças por Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, ele observou esporádicos grupos de um macaco-prego com padrão de pelagem e morfologia distinto do das outras espécies conhecidas. Apesar da diferença visual, eles eram considerados simplesmente como uma variação da espécie Cebus libidinosus, mais comum. Em 2004,Marcelino foi procurado pelo ornitólogo Fábio Olmos, que chamou sua atenção para um lote de macacos-prego apreendidos no Centro de Triagem do Ibama em Alagoas, cuja maioria dos exemplares tinha padrão de pelagem amarela, quase dourada, semelhante ao que ele vinha observando em vida livre. Desconfiado de que tamanha quantidade de tais espécimes representava algo mais que simples variação fenotípica do Cebus libidinosus, Marcelino consultou Alfredo Langguth, mastozoólogo e taxonomista da Universidade Federal da Paraíba. Sabendo que o animal dificilmente teria passado despercebido pelos pioneiros naturalistas, os dois mergulharam em 350 anos de literatura científica, e encontraram na biblioteca do Instituto Ricardo Brennand, em Recife, a obra Historiae Rerum Naturalium Brasiliae, do alemão Georg Marcgrave, de 1648. Marcgrave foi membro da comitiva de Maurício de Nassau e o primeiro a retratar o macaco misterioso, entre 1637 e 1644. Chamando o animal de caitaia, fez minuciosa descrição: “Seu pelo é mais longo que o do sagui (Callythrix jaccus), amarelo-claro, com cabeça arredondada pouco proeminente e nariz pequeno. Seu semblante é calmo e amigável”. O desenho de Marcgrave é fiel às características morfológicas observadas pelos pesquisadores mais de três séculos depois. Todavia, a obra não servia para caracterizar a espécie: descrições desse tipo só passaram a valer cientificamente com o advento do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica, instituído por Carl Linnaeus em 1758, que criou as regras de nomeação de animais e vegetais. Foi então que a dupla localizou, no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, uma pequena pintura do mico atribuída ao também alemão Johann Schreber, datada de 1774. Schreber, que o chamou de Simia flavia (macaco-dourado, em latim), não guardou em coleção científica o animal utilizado como modelo – um espécime de cativeiro na Europa – nem informou sua procedência exata no Brasil. Apesar de vários naturalistas do século 19, como John B. Fischer, Lorenz Oken e Karl F. Von Martius, terem visto claras semelhanças entre o animal pintado por Schreber e o macaco descrito por Marcgrave, a falta de um exemplar em coleção levou a maioria a duvidar da existência do Simia flavia, rebatizado como Cebus flavius pelo francês Ethienne Geoffroy, em 1812.
Ele tornou-se incógnita. Uma criatura teórica. O gênero Cebus, ao qual pertencem todos os macacos-prego, é considerado confuso pelos cientistas. Mas três anos de comparações com primatas similares foram suficientes para a dupla confirmar, em 2006, que a pintura de Schreber retrata de forma exata os macacos-prego observados hoje. “Foi a solução de um mistério taxonômico”, resume Anthony Rylands, diretor do Programa de Espécies Ameaçadas da organização Conservation International. Até agora, dez grupos de Cebus flavius foram localizados na Zona da Mata nordestina, num estudo que investigou 105 áreas em 67 municípios. Ao mesmo tempo, Marcelo Marcelino iniciou um programa de manutenção de uma população cativa com base em animais apreendidos pelo Ibama. O objetivo é garantir uma poupança genética, caso seja necessário, no futuro, recorrer à reintrodução como estratégia de conservação. Pois, dada a vulnerabilidade de seu hábitat, o macaco-prego-galego está de novo ameaçado. Mais uma vez, espera-se que sua existência não se torne apenas uma figura colorida nas páginas amareladas de livros de museu.