Já passa da meia-noite e Kerry e Stacie ainda não voltaram para a toca. Uma leve brisa promete que a madrugada será longa e fria, mas nada que impeça seus dois filhotes de explorar o ambiente desconhecido que os rodeia, entre arbustos secos e pedras. Ali, longe da vista dos pais, brincam entre si, correm e saltam, entram e saem freneticamente da toca no meio do pasto coberto por braquiárias, e entre um estripulia e outra, o maior deles insiste em mastigar uma rã que Kerry trouxe horas antes. Há cerca de 3 meses estes dois filhotes de raposa-do-campo (Lycalopex vetulus) nasceram, e esta toca é provavelmente a terceira que frequentam nesta região de fazendas, rebanhos de gado nelore e muito cupinzeiro, no município de Cumari, sudeste de Goiás. Numa área dominada há séculos por atividade pecuária, este pequeno canídeo, o único exclusivamente brasileiro, aprendeu a sobreviver entre tantos outros carnívoros como lobos-guará, cachorros-do-mato e suçuaranas. No entanto, sua existência se torna frágil diante das atividades humanas, e não muito longe dali certamente Kerry ou Stacie tem que desafiar alguma estrada em busca de alimento.
Foi neste cenário hostil para a fauna silvestre que Frederico Gemesio Lemos encontrou os elementos necessários para pesquisar esta raposinha, um dos sete canídeos menos conhecidos no mundo, entre as 35 espécies existentes. Seu interesse começou em 2002, quando ainda estudante de biologia se deparou com um animal atropelado diferente e resolveu levar para Universidade Federal de Uberlândia, a fim de identificá-lo. A falta de conhecimento preciso por seus colegas de profissão mostrou uma lacuna que deveria ser preenchida. Desde então, vem estudando com afinco as raposas-do-campo, percorrendo as estradas de terra que recortam as inúmeras fazendas locais nesta região conhecida por Limoeiro na tentativa de localizar, acompanhar e entender um pouco mais sobre o comportamento e ecologia da espécie.
“Os adultos não dormem com os filhotes na toca.”, sussurra Fred ao meu lado. Estamos há cerca de 200 m de distância do local onde os filhotes continuam com suas brincadeiras, e já faz 4 horas desde o último aparecimento da fêmea, Stacie. No fim daquela tarde, ainda sob a luz fraca do crepúsculo, surgiu desconfiada por detrás da única árvore presente naqueles campos, chegou sorrateira na toca e soltou um som quase inaudível chamando os filhotes, que saíram alvoroçados e famintos. Cheirou um deles, que mamou rapidamente, rodeou algumas pedras próximas e saiu a passos largos rumo ao topo da colina. O filhote menor ainda correu para acompanhá-la, mas logo voltou e se entreteu com o irmão.
Fred, atualmente professor da Universidade Federal de Goiás e um dos poucos pesquisadores a dedicar tempo quase que integral no estudo da raposinha, ressalta que a falta de conhecimento sobre a espécie é o principal entrave para sua conservação. De hábitos noturno e crepuscular, endêmica do Cerrado brasileiro, justamente um dos biomas mais castigados pela expansão urbana e atividades agropecuárias, a raposa-do-campo tem que lidar com uma infinidade de dificuldades não naturais para sobreviver. Desde 2008 Fred e a bióloga Fernanda Cavalcanti de Azevedo monitoram por rádio-colar, e observações diretas, vários indivíduos de raposinha, numa área equivalente a 15 mil hectares. Constataram que pelo menos 40% da população é morta por questões antrópicas como tiros, envenenamento, perseguição por cães domésticos, fechamento proposital de tocas, atropelamentos em rodovias de asfalto ou terra, e na extensa ferrovia que corta a região. Sem contar com as prováveis mortes decorrentes de doenças transmitidas pelos animais domésticos, mais difíceis de se comprovar. A intolerância de alguns moradores ante o ataque às criações de galinhas é um dos problemas que também preocupa o casal. “Aqui, os fazendeiros dizem que não se importam com os ‘bichos do mato’, desde que não entrem em seus quintais”, desabafa Fred em tom de angustia. Afinal, um animal silvestre não conhece porteiras e divisas, então como minimizar estes conflitos?
Por estas e outras perguntas que criaram, em 2009, o Programa de Conservação Mamíferos do Cerrado (PCMC), um grupo de pesquisa cujos estudos abrangem o sudeste de Goiás e o Triângulo Mineiro. “Apesar de ser uma região tradicionalmente antropizada, com agricultura e pecuária extensiva, é impressionante a quantidade de carnívoros silvestres e outras espécies de mamíferos que temos encontrado. Todos estas espécies são foco dos nossos estudos”.
Somos despertados das reflexões com o aparecimento de um casal de cachorros-do-mato (Cerdocyon thous), assustando os filhotes que se entocam novamente. Esta espécie de carnívoro é muito comum em todo Brasil, e aqui na região do Limoeiro seu território sobrepõe ao das raposinhas. A princípio parece que convivem bem, mas pelo fato deste canídeo ter um porte consideravelmente maior, talvez seja o motivo para Kerry e Stacie mudarem de toca com uma certa frequência. Fred acredita que, para sobreviver, a raposa se adaptou a um nicho ecológico não muito utilizado por canídeos maiores, usufruindo assim de tocas de tatus abandonadas, se alimentando de pequenos frutos silvestres do Cerrado e principalmente, de insetos. A base alimentar da raposa-do-campo é, por incrível que pareça, cupim. Isto explica as inúmeras vezes em que vimos os adultos subirem em cupinzeiros, ficarem lambendo a terra ou farejando as trilhas de gado.
Pouco tempo após os cachorros-do-mato terem sondado a toca, Stacie retorna de sua ronda noturna. Os filhotes saem alvoroçados mas a fêmea se mostra nitidamente incomodada pelo cheiro do outro carnívoro. Sem pestanejar pega um dos filhotes pela boca e some noite adentro, seguido pelo outro. Um nítido e bom instinto de sobrevivência da prole, apesar de ter dificultado nossa espreita. Teremos que recomeçar a busca pela nova toca, atividade que já nos consumiu quase duas semanas de dedicação no romper da madrugada.
Com a criação do Programa, a dupla de pesquisadores tem se dedicado com afinco no estudo de carnívoros na região. Em 2013 organizaram uma força tarefa envolvendo vários biólogos e veterinários – daí os nomes da maioria das raposas, em homenagem aos colaboradores e parceiros. Com o apoio de diversas instituições nacionais e internacionais, entre elas a Fundação Parque Zoológico de São Paulo, o Zoológico de Cleveland e o Instituto Smithsonian de Biologia da Conservação (EUA), a Fundação Oswaldo Cruz e as Universidades Federais de São Carlos e Uberlândia, durante dois meses realizaram 128 capturas para aparelhamento dos animais com radio-colar, realização de biometria e coleta de amostras de sangue. Totalizaram 56 capturas novas, entre raposas-do-campo, lobos-guarás, cachorros-do-mato e jaritatacas, e 72 recapturas de animais já aparelhados. “Queremos acompanhar a gestação das raposas fêmeas monitoradas. Só assim conheceremos seu dia-a-dia e um pouco mais sobre cuidado parental; a relação entre o casal, como esses canídeos interagem entre si ou com espécies diferentes, quais são seus modos de vida alimentar e de defesa”. Além disso, o envolvimento de pesquisadores da área de saúde animal poderá responder até que ponto as raposas e outros carnívoros silvestres são de fato suscetíveis a doenças transmitidas por animais domésticos.
Nos dias seguintes dobramos os esforços para percorrer a grande área de fazendas conhecida como Masai Mara, batizada pela equipe numa alusão à grande planície africana dominada por milhares de animais. Seguimos no percalço de Kerry, Stacie e seus dois filhotes. Nos 15 anos de acompanhamento das raposas no Limoeiro, os pesquisadores já monitoraram 42 indivíduos. De 21 filhotes acompanhados pelo grupo, o ciclo de vida não chegou a completar 1 ano em mais da metade. “Num trabalho que publicamos com diferentes instituições e parceria com o Centro Nacional para Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP/ICMBio), conseguimos despertar a atenção para o status de conservação da raposa-do-campo, que recentemente foi avaliada como vulnerável à extinção”. Apesar da triste constatação, pelo menos dá força legal para proteção da espécie e assim favorecer a implementação de estratégias e ações de conservação.
Do topo de uma colina, o que vemos são pastos a se perder de vista, com rebanhos de gado e um pouco de vegetação nativa, com lobeiras e algumas palmeiras de bocaiúva dando um ar bucólico ao cenário. Ao fundo, um pontilhão imponente da ferrovia rasga o horizonte montanhoso. Mas nos remetemos ao santuário africano quando começamos a identificar, no lusco-fusco da noite, a silhueta de tamanduás-bandeira, os passos ligeiros dos cachorros-do-mato e a presença silenciosa de Stacie rondando um aglomerado de pedras. “Ali deve estar a toca”, exalta-se Fred.
O acompanhamento sistemático de alguns casais de raposas possibilitou à equipe descobrir e constatar uma série de comportamentos. A raposa não é um animal solitário como se imaginava, e o casal compartilha a mesma área por um tempo bem maior, mesmo fora do período reprodutivo.
“O cuidado do macho com os filhotes começa desde a gestação; percebemos que o casal se reveza na preparação da toca e nos cuidados com a prole, que pode levar de 10 meses a 01 ano.” Fred identificou que o território de uma raposa varia de 200 a 400 hectares, sendo que o casal compartilha este ambiente, mudando ou alternando de toca ao longo do mês e dos anos. Algumas tocas são utilizadas sistematicamente por anos a fio, sendo que alguns filhotes permanecem nos territórios dos pais, quando os mesmos vem a desaparecer. A equipe adotou o padrão, não usual para ciência, de dar nomes aos animais ao invés de simples números numa planilha de dados. “Cada indivíduo de raposa-do-campo nos ‘conta’ um pouco de seus hábitos, nos permitindo conhecer e entender mais a história de vida da espécie como um todo” justifica Fred. Cada nome conecta a equipe a informações científicas, mas também a uma memória pessoal. É o caso de Nilsão, uma raposa macho acompanhado por Fred durante mais de dez anos e que teve o nome escolhido em homenagem ao pai do pesquisador, pois no início de sua carreira o acompanhou em diversos trabalhos de campo.
A nova toca de Stacie não é muito longe da primeira. Entre blocos de quartzito branco, um pequeno buraco dá acesso provavelmente a uma câmara mais alargada. Não tardou muito do inicio da noite e os filhotes deram as caras, mesmo antes dos adultos chegarem. Estão entrando na fase de se afastarem cada vez mais da toca, e apesar de naturalmente seguirem os pais, pode acontecer de algum filhote mais ousado desbravar o ambiente por conta própria. É aí que mora o perigo, pois ainda são muito vulneráveis principalmente aos cachorros das fazendas. Por estas e outras razões que a equipe decidiu trabalhar em áreas afetadas pelo homem. Querem descobrir como os animais sobrevivem nestas áreas, como respondem às frequentes modificações ambientais. “Temos focado nossa pesquisa em áreas fora de Unidades de Conservação porque não é nossa realidade. Aqui em Minas Gerais, um Estado inserido no Bioma Cerrado, temos menos de 5% do território protegido, e apenas uma parcela desta área está implementada em forma de parques.”
Considerando que no Brasil uma unidade de conservação não tem sido sinônimo de ambiente tranquilo e protegido para a maioria das espécies da fauna, principalmente para carnívoros e mamíferos de grande porte que precisam de grandes áreas para se alimentar e reproduzir, Fred acredita que é necessário também criar campanhas efetivas de educação e conscientização da população. “Salvo em áreas protegidas, a tendência mundial é que os animais silvestres tenham cada vez mais contato com o homem. O mundo já está dando sinais de cansaço, mas eu acredito numa relação harmoniosa entre nós e a natureza. Quero ver os netos de Stacie e Kerry caminhando rápido por estas colinas, buscando tocas e farejando seu cupim, assim como Dian Fossei, Villas-Bôas, Jane Goodall, Schaller e tantas outras raposas que tive o privilégio de conhecer “.