Ela saiu da pequena casa de taipa, num passo lento mas firme. Trazia consigo uma leiteira amassada de alumínio, provavelmente comprada de algum caixeiro viajante, única fonte de utensílios domésticos naquela remota região do sertão nordestino. Um pequeno vilarejo que até hoje não consta no mapa. Informal, despejou um tanto de água num buraco da rua de terra, onde um pequeno porco rosado esperava ansiosamente por aquela benção sob o sol escaldante. Voltou calmamente para sua casa, deixando a porta entreaberta. Após a terceira vez em que realizou aquele ritual de compartilhar a água tão sagrada para o sertanejo, com o indefeso porco, me aproximei vagarosamente da pequena casa de taipa.
Encontrei a senhora sentada perto da porta, olhando para fora, para o porco, para o calor que vibrava no solo ressequido.
– Tarde!
– Tarde, respondeu com uma voz suavemente rouca, e já emendou: “Donde o sinhô é?”
– Sou nascido e criado em São Paulo, mas minha mãe é daqui da Bahia.
– Tenho um sobrinho que mora em São Paulo, o João. Faz tempo que ele num parece por aqui… quando o sinhô incontrá ele, manda um abraço!
Neste momento me arrepiei, como quem sente o primeiro golpe de felicidade por uma sensação nunca antes percebida. Jamais havia provado tamanha ingenuidade vinda de alguém que não fosse criança.
– É que tô com 102, 103… num alembro direito mais das coisa!
– A senhora diz…que está com 102 anos?
– É meu sinhô, acho que sim… num me alembro mais…
– Posso tirar uma foto da senhora?
– Pode sim, e mostra pro meu sobrinho, o João.
E ficou me olhando, com um olhar de candura, opaco pelo tempo, brilhante pela sabedoria que carrega. Alguns incautos diriam ser fruto da catarata. Prefiro acreditar no devaneio de poeta e enxergar uma beleza infinitamente superior, simples e pura. Uma alma que há um século vive neste mundo, descobrindo, reaprendendo, experimentando. Compartilhando seu bem maior, a água. Proseando com um estranho, que no fundo não é estranho. Apenas mais uma alma vivente neste mundo físico. E aqueles olhos enxergaram isto, olhos que já viram de tudo, já lacrimejaram um tanto mais, e agora sorriem.
– Qual o nome da senhora?
– Maria.
Simplesmente Maria.
Laje dos Negros, Bahia, 1996