Nos últimos dez anos, participei de pelo menos vinte expedições para todos os Estados que abrangem o bioma amazônico. De grandes povoados a regiões inóspitas, de áreas intocadas a tristemente devastadas. Uma Amazônia singular, onde tudo é exponencialmente extremo. E mesmo para quem é acostumado com estas expedições, a intensidade da rotina vai minando a energia, criando feridas, umedecendo a disposição. São dias e dias enfurnado em acampamentos, tomando banho em igarapés escuros, vendo o sol apenas nas pequenas clareiras de árvores que caem. Com os pés e roupas molhadas, que não dão conta de secar. Enfrentando hordas de inúmeras variedades de abelhas, que lambem seu suor, seus olhos, e picam se forem molestadas. Centenas delas, sem trégua. Só a calada da noite proporciona sua ausência.
Vi mateiros caírem de febre, no vai-e-vem da malária, e tantos outros que voltavam das trilhas, e calados, pegavam seu ‘rancho’ de feijão, charque e farinha, e buscavam algum canto para alimentar o corpo castigado. As conversas vão escasseando à medida que o tempo passa; sinal de inércia, de fadiga física e mental. Dizem que a floresta é claustrofóbica. E é mesmo. A luz é pouca, a umidade é muita, a altura das árvores é extrema. A sensação que estamos sendo observados é constante. Ao mesmo tempo é fantasticamente misteriosa, livre de conceitos sobre certo ou errado, bem ou mal. E apenas quem consegue ver a beleza escondida entre seus troncos seculares percebe que os monstros estão na nossa imaginação. Tudo segue seu ritmo natural, e para tanto, temos que entender este movimento.
O curupira, no final das contas, é amigo, e dá seu conselho: "Não pise distraído, não aja na insegurança, não vacile. Seja prudente". Pois a surucucu está ali, camuflada, e só o olhar treinado é capaz de ver. Os mosquitos tatuquira também estão ali; só uma picada sutil e quem sabe você perceba que já pousou na sua pele, e só nos resta a esperança que aquele pequeno inseto não transmita a leishmaniose. "Lésh para os íntimos". As formas invisíveis de vida capazes de nos adoecer podem estar ali, nas águas paradas dos igarapés.
Mas também está ali o gracioso voo das araras, o sacudir bagunceiro dos galhos pelos grupos de macaco-aranha, os cantos dos pequenos pássaros que não se vê, mas estão ali, camuflados pela ordem natural da sobrevivência. A fotogenia graciosa das pererecas multicoloridas também estão ali, entre as folhas secas do solo fértil da grande floresta. A curiosa irara pulando nos troncos também está ali, e a sensação deliciosa ao perceber que aquele agitado animal talvez nunca tenha visto um homem. O rastro dos gatos, grandes e pequenos, estão impressos em meio às grandes folhas que se soltam do dossel. O nascer memorável do sol sobre o lajedo de pedra, resquício de um Cerrado que outrora dominara a Amazônia, também está ali.
Está ali a imponência das castanheiras, que deixa despencar seus duros ouriços e nos remete à desenfreada vontade de comer suas sementes. Estão ali nossos golpes de facão para expor as castanhas deliciosas, cuja casca abrimos com os dentes (e que meu irmão dentista não me condene!), para roer fervorosamente como a melhor das iguarias.
Está ali a ganância daqueles que não visam o amanhã, e alheios a qualquer bom senso insistem em sucumbir aquele mar de árvores. Afinal, sua ignorância restrita acredita que as ações imediatas lhes dá mais lucro, mas se esquecem que não dá futuro. E o futuro incerto será de seus descendentes.
Mas estão ali os gestos ideológicos de quem percebe o valor das coisas, da continuidade, da importância deste ecossistema e seus moradores, e vive pela conservação desta que ainda continua sendo a maior floresta tropical do mundo.
Rio Guariba, AM, 2014