Nos últimos 15 anos fiz inúmeras viagens à Amazônia. Conheci lugares que não haviam qualquer indício humano, sobrevoei durante horas em helicópteros e monomotores remendados, tive a oportunidade de vivenciar incríveis experiências. Outras, nem tanto.
E apesar de ter visto hectares e mais hectares de floresta queimada, com a fumaça denunciando brasas tardias e ameaçadoras, ou garimpeiros embriagados brigando com facões, uma das experiências mais marcantes foram os dias (e noites) em que permaneci no garimpo Juruena.
Considerado um dos maiores garimpos já existentes na Amazônia, esta cidade-fantasma às margens do rio de mesmo nome chegou a abrigar 3000 pessoas. Casas, ‘Banco do Garimpo’, bares e comércio tiveram seus tempos de glória, com famílias se mudando para lá em busca do sonho dourado. Hoje, o que restou foram alguns poucos personagens mal-encarados, moças-da-vida, e “Seu Maranhão”.
O conheci no único comércio ‘oficial’ ainda aberto. Uma porta com tela furada anti-mosquito (ou anti-malária, se preferirem esclarecimentos) denunciava a decadência. Entrei no ambiente escuro, paredes de madeira que há anos não via uma mão de tinta. No canto perto da janela, lá estava ele. Olhou-me sereno, o convite de me aproximar com apenas um gesto de cabeça. Lá estava ele, atrás de um balcão outrora coberto com um vigoroso feltro preto, e que agora rasgos no tecido expunham a madeira já podre.
Puxei uma conversa informal, olhei algumas poucas roupas mal dobradas nas prateleiras, cuidadosamente envelopadas com plástico. Lá estava ele e seu tesouro, sua memória dos tempos comerciais. Me contou sua trajetória, quando saiu há 30 anos do Maranhão em busca da riqueza ilusoriamente fácil do subsolo amazônico. O que passou para chegar até ali, quantas malárias pegou, quantas voadeiras naufragou.
- Não tem família?
- Tenho, mas está lá no Maranhão...quando dá, mando um dinheiro para eles.
- Quantos filhos?
- Seis filhos, alguns netos, não me alembro mais. O comercio acabou aqui, vendo uma calça, quando muito, por mês. Me pagam em ouro. Mas se eu negocio o ouro aqui dentro, o que ganho mal dá para me manter.
- Porque não volta, então?
Foi quando senti o peso do silêncio. Um olhar nostálgico foi lançado para o vazio que nos separava. Naquele momento, Seu Maranhão mostrou que estava preso a um espaço-tempo inexistente. “Seu Dito do Armarinho” já não existia mais naquele garimpo, simplesmente porque já não existia mais garimpo. E “Seu Benedito-marido-e-pai” há muito deixara de existir lá pelas bandas do Maranhão.
Seu Maranhão de olhar sereno, mas perdido de si mesmo. Mais um esquecido pelo mundo.
Garimpo Juruena, AM, 2007